A Guerra na Ucrânia — “Mais Uma Guerra na Europa”. Por Carlos Branco

Seleção de Francisco Tavares

15 m de leitura

Com a devida vénia e agradecimento a Carlos Branco e a O Referencial da Associação 25 de Abril  

MAIS UMA GUERRA NA EUROPA

 Por Carlos Branco

Publicado por , nº 144, Janeiro-Março 2022 (ver aqui)

 

Não sei o que será preciso acontecer mais para se perceber que a Rússia lutará até à exaustão das suas forças para impedir a entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO. Esse limite poderá não ter limite

 

O TERRITÓRIO EUROPEU ENCONTRA-SE novamente envolvido numa guerra de consequências ainda difíceis de antecipar. Não bastaram duas guerras mundiais. Esta guerra tem por fim inviabilizar uma possível adesão da Ucrânia à NATO. Acossada pelas ameaças ao seu território colocadas pelos sistemas antimíssil instalados próximo da sua fronteira, capazes de atingir Moscovo e São Petersburgo, submarinos nucleares norte-americanos no norte da Noruega, e o aumento das atividades navais da Aliança no Mar Negro, Moscovo pretende garantir que a NATO não vai continuar a expandir-se para Leste, nem vai continuar a colocar sistemas de armas ofensivos próximo das suas fronteiras, garantias que a Casa Branca não está disposta a dar.

Por isso, o governo de Moscovo não está disposto a permitir a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO. Trata-se de uma questão considerada existencial para a Rússia. Ficaria numa situação de extrema vulnerabilidade noutras regiões, nomeadamente no Cáucaso. Abriria um precedente sem fim à vista. Seria o fim da Rússia como potência. De igual modo, os EUA não permitirão que uma potência rival estabeleça bases militares na América Central, ou a China em regiões próximas do seu território, que considere ameaça direta ao seu território.

Neste plano inclinado descendente em que nos encontramos, as lideranças políticas europeias parecem não estar a perceber o que está realmente em causa. A possibilidade de o conflito russo-ucraniano vir a extravasar o quadro regional é real. Moscovo tem vindo a alertar há cerca de 30 anos para este problema. As preocupações, os alertas e os protestos russos não foram ouvidos, aumentando o nível de ameaça percebido por Moscovo. A oposição da Rússia ao alargamento da NATO tem sido erradamente atribuída ao espírito maléfico de Putin. É um problema securitário existencial, vital para a Rússia, que extravasa o poder de quem, num dado momento, se senta no Kremlin.

 

QUIMERA CHAMADA UNIÃO EUROPEIA

A União Europeia (UE) empenhou-se pouquíssimo em evitar o aprofundamento desta crise que nos levou à guerra, talvez pensando que poderia ser imune às suas consequências. Os efeitos começam já a bater-lhe à porta. A onda de sanções à Rússia teria necessariamente um efeito boomerang. A expulsão da Federação Russa do sistema SWIFT vai ter consequências devastadoras para a Rússia, mas também para a Europa. Washington posiciona-se para finalmente conseguir vender o seu shale gaz aos europeus, consideravelmente mais caro do que o proveniente da Rússia. A inflação campeia, o euro desvalorizou relativamente ao dólar, as economias europeias continuarão a perder capacidade competitiva relativamente às asiáticas. A perda de uns será o ganho de outros.

A Europa perdeu uma oportunidade única para se afirmar como um ator relevante da cena internacional, atuando como mediador das divergências geopolíticas entre os EUA e a Rússia, em vez de se eternizar no papel de deputy sherif, esvaziando de sentido as suas pretensões de autonomia estratégica por que tanto tem pugnado. A diplomacia europeia devia ter-se empenhado em pressionar o regime de Kiev para implementar os acordos de Minsk, em particular, conceder autonomia ao Donbass, e condenar as políticas xenófobas de Kiev relativamente às suas minorias (russa, húngara, romena, etc.), com as quais tem tido uma inaceitável tolerância e complacência.

Mais importante que tudo, nesse papel de mediador, que nunca assumiu, a UE devia ter procurado perceber as preocupações de segurança do “outro lado”, mesmo que não as compartilhasse. Sem as defender, devia ter procurado perceber a sua racionalidade, tanto securitária como geopolítica, não deixando essas discussões cruciais sobre o seu futuro entregues exclusivamente à diplomacia bilateral dos EUA e da Rússia.

Igualmente grave, tem sido a ausência de esforços sérios da UE para promover políticas de “construção de confiança” em território europeu, tanto no quadro da CSDP [Política Comum de Segurança e Defesa da União Europeia, na sigla inglesa] como da NATO, e a falta de visão em promover uma ordem de segurança europeia, que incluísse a Rússia.

Em última análise, uma guerra na Europa legitimará a presença militar norte-americana no continente, aumentando a dependência europeia de Washington a todos os níveis, em particular ao nível económico. O sonho de um projeto geopolítico autónomo na Europa ficará condenado no curto e médio prazo, remetendo a Europa para um apêndice estratégico de Washington.

 

GREAT POWER POLITICS

A explicação para esta guerra não se encontra em abordagens maniqueístas dos bons contra os maus, mas sim na geoestratégia, que tem influenciado de modo decisivo a política externa das grandes potências. Isso é bem visível no caso norte-americano. A política da contenção da União Soviética adotada por Washington, nos tempos da Guerra Fria, elaborada e desenvolvida por George Kennan, o arquiteto da estratégia americana para conter a União Soviética, fortemente inspirada nos trabalhos do geoestratega Nicholas Spykman, é um exemplo flagrante disso.

Mais recentemente, Zbigniew Brzezinski, conselheiro nacional de segurança do presidente Jimmy Carter, avançou no seu livro The Grand Chessboard (1997), com a teoria dos pivôs geopolíticos, considerando a Ucrânia um desses pivôs. Segundo Brzezinski, a Ucrânia “é um pivô geopolítico porque a sua existência como país independente ajuda a transformar a Rússia. Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império euroasiático… se Moscovo recuperar o controlo da Ucrânia, a Rússia recupera imediatamente a capacidade de se tornar num estado imperial poderoso, abrangendo a Europa e a Ásia.”

Este pensamento ajuda a compreender a tensão que se vive há, pelo menos, quinze anos naquele país. Falamos do confronto entre dois atores geoestratégicos de primeira grandeza: EUA e Rússia.

Foi um racional de natureza geostratégica que prevaleceu quando: (1) no culminar da “revolução laranja” (janeiro 2005), se instalou em Kiev um presidente pró-EUA (Viktor Yushchenko), “revolução” essa revertida pelo voto popular com a eleição de um presidente pró-Rússia (Viktor Yanokovitch), em 2010; (2) a Administração Bush impôs, em 2008, na Cimeira da NATO, em Bucareste, o convite à Ucrânia e à Geórgia para aderirem à Aliança; (3) Viktor Yanokovitch, um presidente democraticamente eleito, foi derrubado em 2014 através de um golpe de Estado orquestrado por Washington, perpetrado por grupos paramilitares neonazis, colocando no poder grupos nacionalistas ucranianos anti-russos.

Não bastou ver, em Kiev, Victoria Nuland, secretária de Estado adjunta para os Assuntos Europeus e Eurasiáticos, juntamente com Geoffrey Pyatt, embaixador americano na Ucrânia, a distribuírem comida aos “revoltosos”, numa clara ingerência nos assuntos internos da Ucrânia. As credenciais democráticas do regime instaurado na Ucrânia, em 2014, deixam muito a desejar, ao ponto da insuspeita Freedom House classificar a Ucrânia como um país apenas “parcialmente livre”, a mesma classificação atribuída ao governo filipino chefiado por Rodrigo Duterte.

Dirigentes e analistas políticos russos – incluindo reformistas liberais – têm vindo ao longo dos anos a avisar que tornar a Ucrânia ou a Geórgia clientes securitários dos EUA ou membros da NATO seria cruzar uma linha vermelha, de que resultaria um perigo de guerra. Essas advertências foram ecoadas por George Kennan, Henry Kissinger e outros estadistas americanos.

Embora os Estados sejam todos iguais, as grandes potências são mais iguais do que os outros Estados. A Rússia não está interessada exatamente numa esfera de influência, mas na criação de uma zona de segurança ao seu redor. Os temores russos sobre a expansão da NATO até à sua fronteira deviam ser compreensíveis para qualquer americano que tenha ouvido falar da Doutrina Monroe.

 

PROPOSTAS RUSSAS

Com o objetivo de encontrar soluções para a crise, a Rússia apresentou dois projetos de tratados, um a Washington e outro à NATO. O primeiro, sobre um Pacto de Paz entre a Rússia e os EUA; e o segundo, sobre um pacto com a NATO.

Baseando-se no igual direito à segurança para todas as nações e nos princípios da Carta das Nações Unidas, que proíbem a ameaça ou o uso da força, Moscovo propôs a Washington o abandono da expansão da NATO para Leste, nomeadamente a adesão de Estados que tivessem integrado a extinta União Soviética, e a retirada de tropas da Aliança dos países que pertenceram ao antigo bloco soviético. Os EUA e a Rússia não usariam aviões e navios equipados com armamento nuclear em regiões de onde se pudessem atacar mutuamente; e informariam sobre os movimentos dos seus sistemas de lançamento de armas nucleares.

De igual modo, a Rússia e os EUA comprometer-se-iam a não utilizar mísseis de curto e médio alcance e armas nucleares fora dos seus territórios nacionais nem em áreas dos seus territórios nacionais, a partir dos quais essas armas pudessem atingir o território da outra parte. Isto aplica-se à instalação dos sistemas Aegis na Polónia e na Roménia, colocando Moscovo e São Petersburgo no seu alcance.

Relativamente à NATO, a Rússia propôs um tratado de segurança, no qual as partes não se considerassem adversárias ou inimigas e, como tal, se consultassem regularmente sobre questões de segurança e informassem mutuamente da realização de exercícios e manobras militares. O dispositivo de forças militares devia limitar-se ao que estava em vigor à data de 27 de maio de 1997. As partes comprometer-se-iam a não colocar mísseis de curto e médio alcance em zonas que lhes permitissem atingir o território da outra parte. E a NATO cessaria o seu programa de alargamento para Leste.

Tanto os EUA como a NATO mantiveram-se inflexíveis perante as propostas russas, continuando determinados em prosseguir a política de “porta aberta”, rejeitando a possibilidade de retirar da agenda a adesão da Ucrânia à Aliança. A possibilidade de regressar ao statu quo de 1997 foi considerada não negociável.

 

GUERRA NÃO EVITADA

A partir de 2014, a Ucrânia tornou-se uma ponta de lança das políticas norte-americanas anti-Rússia. A intervenção sistemática e continuada dos EUA nos assuntos internos da Ucrânia não passou despercebida à Rússia, em particular o fornecimento massivo, durante estes anos, de armamento a Kiev. Ainda em 2014, a Rússia invadiu a Ucrânia e ocupou a Crimeia. E, tal como previsto num diálogo de Boris Ieltsin com Bill Clinton, em 1995, a presente liderança russa considerou que tinha chegado a hora de ser ouvida com estrondo.

Putin julgou que poderia, através de uma manobra em que conjugaria a ação diplomática com uma demonstração de força, resolver o impasse de 20 anos causado pelo alargamento da NATO a Leste, a qual não parou com a sua política de porta aberta e dos oito anos de ouvidos de mercador relativamente à implementação dos acordos de Minsk.

A possibilidade de o conflito russo-ucraniano vir a extravasar o quadro regional é real. Na foto, jovens erguendo bandeiras nacionais de várias regiões do mundo manifestaram-se em Lisboa para apelar à paz na Ucrânia. Paulo Cunha, Lusa.

 

Em dezembro de 2021, relembre-se, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros tornou público dois projetos de acordos com os EUA e com a NATO, onde pontificavam as garantias de segurança que a Rússia pretendia ver salvaguardas. Entre outras, a não adesão da Ucrânia à NATO. Os pedidos de garantia foram rejeitados, pelos EUA e pela NATO, não havendo lugar a qualquer convergência ou princípio de entendimento.

O caldo entornou-se definitivamente no dia 19 de fevereiro de 2022, na Conferência de Segurança de Munique: o presidente Zelenski manifestou a intenção de renunciar ao protocolo de Budapeste, abdicando da sua neutralidade (na verdade, já o tinha feito quando inscreveu na sua Constituição a ambição de aderir à NATO), abrindo a possibilidade de a Ucrânia se rearmar nuclearmente. Esta intervenção foi aplaudida de pé pela audiência. Moscovo já tinha denunciado por diversas vezes a pretensão da Ucrânia em possuir armamento nuclear. Tem a tecnologia desenvolvida pela URSS e os meios de lançamento. Desconhece-se se terá recebido ajuda externa para tal.

Em represália pelo discurso de Zelenski, em Munique, agravado pela ausência de respostas sobre as pretensões ucranianas de aderir à NATO, e aparentemente assumindo um ponto de não retorno, Putin anuncia no dia 21 de fevereiro que ia reconhecer a independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk, argumentando que “tem todo o direito de tomar medidas de retaliação para assegurar a nossa segurança [da Rússia]. É exatamente isso que faremos.”

 

E DEPOIS DA ÚLTIMA GOTA?

Com a situação ao rubro, a sinalização pública e aclamada do patamar nuclear por Zelenski e o abandono dos protocolos de Budapeste pode ser lida como um evento saliente. O que até aí era visto por alguns especialistas (nos quais me incluo) como estando para além dos limites do provável, isto é, uma invasão generalizada da Ucrânia, tornou-se um facto novo. Após este conspícuo momento (pouco enfatizado nos media “ocidentais”) percebeu-se claramente que a situação se tinha alterado, e que os esforços diplomáticos de última hora tinham falhado.

Se era possível vislumbrar algo na neblina, antes do início do conflito, era a certeza de que o Ocidente ajudaria a Ucrânia, mas que não iria assumir com sangue as ansiedades ucranianas. Os EUA instigaram a confrontação ucraniana com a Rússia, sabendo que não estariam disponíveis para combater a seu lado. O mesmo aconteceu com a UE, que andou estes anos todos a encorajar os ucranianos, sabendo que na hora da decisão não se iria apresentar ao lado de Kiev. Os atos heroicos no campo de batalha seriam deixados para os ucranianos.

A Zelenski foi dado o papel de peão num transcendente xadrez geoestratégico de Great Power Politics, que lhe escapa, não passando de um mandatário de agendas que ultrapassam largamente os interesses securitários do Estado ucraniano, submetendo a sua população a um risco securitário extremo. Podia ter tomado os acontecimentos ocorridos na Geórgia no ano de 2008 como um dado adquirido e empreendido uma “Estratégia de Nash”, i.e., dada a estratégia dos outros, qual a sua melhor resposta? Todos estes desenvolvimentos empurraram a Rússia para um jogo de soma negativa. Neste cenário, Moscovo pode até jogar para perder, desde que o oponente do outro lado do tabuleiro perca também.

Parece insólito acreditar que a Ucrânia sozinha poderá vencer militarmente a Rússia, independentemente do armamento que lhe for proporcionado. Essa ajuda tornará certamente mais oneroso o esforço de ocupação russa, mas devido à sua massa, a Rússia muito provavelmente ganhará militarmente. Por mil e uma razões, a Rússia não se pode dar ao luxo de uma derrota no território da Ucrânia, como aconteceu com os americanos no Afeganistão. Não parece estar em causa a vitória russa sobre os ucranianos, mas o custo que essa vitória poderá comportar (com os concomitantes efeitos destrutivos no terreno).

Não sei o que será preciso acontecer mais para se perceber que a Rússia lutará até à exaustão das suas forças para impedir a entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO. Esse limite poderá não ter limite.

Tudo isto lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba. Não restam hoje quaisquer dúvidas de que Washington sabia que, se não fosse satisfeita a principal reivindicação russa – a não adesão da Ucrânia à NATO e o seu estatuto de neutralidade estratégica – algo de muito definitivo iria ocorrer. Optou por não fazer nada para o evitar.

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O autor: Carlos Branco é Major-general do Exército na situação de reserva, membro da direção da A25A.

 

 

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